UM NOVO AMOR
- Marcelo Braz de Almeida
- 2 de ago. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 15 de jan. de 2024

Em seu texto “O Amor da Língua”, Bénédicte Jullien* afirma que "amava o amor" e que essa relação com o amor a afastava do desejo. Como podemos pensar essas duas asserções a partir do que Lacan trabalha no Seminário XX como a necessária cisão entre o objeto a e o S(Ⱥ)?
No texto de Jullien, aparecera uma primeira relação com o amor sustentada pelo discurso do mestre, ela amava o amor. O amor era o senhor de todas as suas relações ao longo da vida. Bénédicte se assujeitava (S2) ao fazer-se disso uma ordem que precisava ser cumprida a todo custo, inclusive, lhe negando o caminho que vai do amor ao desejo, anulando o desejo por meio do amor. No caso dela, “o amor” era um S1 que sustentava o amor que esperava no Pai da exceção. Ela amava um amor que, na verdade, era thanatos. Ela amava o amor de Um pai que ex-siste. Um amor que construía uma armadura a partir desse lugar da exceção e que se fazia representar na metáfora da “filha única”, significante da alienação ao Outro na família. O Pai era uma exceção, ela se fazia exceção também. Esperava, como bem disse, que essa identificação pudesse lhe dar seu ser de mulher. Fazer-se A mulher do Pai, a loucura da histeria. A partir daí, ela se fazia escrava do amor (S2), estava a serviço dele, tinha que sustentá-lo no sintoma, pois assim sustentava o Pai na relação com o Outro.
Ela era a fiel escudeira pronta para sustentar o amor aonde quer que fosse, era a vassala perfeita. Claro que isso trazia consequências, um sintoma melancólico se fazia presente e marcava o preço pela alienação. O amor ao Pai se desdobrava no amor ao Outro, que não lhe dava o que buscava, um Outro caprichoso que sempre lhe frustrava, ela nunca era amada suficientemente. Ela se agarrava ao ideal de casal de seus pais e, assim, continuava a se afastar do desejo, não encontrava o amor ideal, o amor suficiente, porque não estava à altura desse amor idealizado dos pais. Não podia passar do gozo ao desejo, o amor não cumpria essa função.
Ela estava mal, mas a associação livre foi esse “embalo” que lhe permitiu andar ao lhe permitir tropeçar no inconsciente transferencial. Andar tropeçando é melhor do que não andar. O espaço de uma sessão e o espaço de um lapso puderam lhe dar-se ao direito de falar, de errar, de tropeçar. Então Jullien foi em busca do desejo, passou para o segundo andar do grafo, um andar melhor em busca da separação depois de alienar-se ao significante da transferência. Fez 30 anos de análise, foi para além da demanda para encontrar o desejo no inconsciente transferencial. Era uma busca devotada. Ela recordava, repetia e elaborava incansavelmente. Como ela mesma disse: “eu amava o meu inconsciente”, uma outra forma de dizer que seguia sustentada pelo amor ao Pai, sua defesa frente ao Real. O encontro com o desejo a levou ao encontro com a castração. Ela construiu uma fantasia: “sou nada para o Outro”. Essa construção lhe possibilitara um atravessamento do fantasma, que lhe permitira sair da falta, do capricho do Outro, e ir ao nada. O que Jullien come? Ela come “nada”. O objeto a se apresenta como oral na sua histeria, marcando a insatisfação do desejo sustentada pela parceria-sintomática com o “nada”, na medida em que o objeto a não falta, ele é nada simplesmente. O atravessamento do fantasma a levou a um outro sintoma: a solidão. Ela não era mulher suficiente (impotência) para ter um parceiro, o que, por conseguinte, a levou de volta à castração.
Jullien deu mais um passo em seu andar errante. Ela percebeu que sua relação fantasmática com o objeto oral estava amalgamada por um “cale-se”. Jullien comia de boca fechada. Não conhecia o saber-sabor das coisas. A voz do supereu exigia do significante fálico: “me dê seu ser de mulher!”, o qual dividia o sujeito. O inconsciente transferencial respondia com um “sou nada”. A enunciação seria: “cale-se (supereu), porque você é nada (objeto)”. Jullien encontrava, no objeto, uma resposta para as exigências do supereu. A resposta estava encorada num gozo masoquista que a angustiava, mas do qual não abria mão. Esse objeto veio em resposta à inexistência da mulher, veio encobrir sua inexistência (Ⱥ). Esse amalgamento a levara à superfície de um outro amalgamento, o amalgamento de lalangue com a fala. Ela pudera, finalmente, desautorizar o juiz e se permitira abrir a boca. Como ela mesma disse: “eu não tinha mais que responder à demanda de amor com uma presença e uma escuta silenciosa constantes.”
Aqui tem um ponto importante. A análise permitiu que Jullien separasse o a do A por meio do caminho feito da histericização do discurso ao discurso analítico quando se deu conta de que o “nada” não lhe falta, que essa frustração presente toda vez que encontra um outro é imaginária, mas que, simultaneamente, é esse transitivismo de um outro ao outro que lhe dá corpo i(a). Separado do a, o Outro se revela como o suporte simbólico do Pai como aponta Lacan no Seminário 20: “que o simbólico (A) seja o suporte do que foi feito Deus, está fora de dúvida.” (Lacan, p. 111) No entanto, “o a pôde prestar à confusão com o S(Ⱥ)... é aqui que uma cisão, um descolamento, resta a ser feito” (Lacan, p. 112), porque falar de amor é um gozo em si mesmo, sustentado pela coalescência do a com o S(Ⱥ), o que Lacan chama de princípio do prazer. Uma análise precisa ir além do princípio de prazer, “suportar o intolerável do seu mundo (mundus)” (Lacan, p. 113) para além da fantasística de cada um, sustentar o que é thanatos, o que não faz conjunto.
Só então Jullien passara a tocar em algo do feminino propriamente em sua análise. A difamação (ditfemme) dȺ mulher se fizera presente. A difamada, a immunda como um desdobramento da impossibilidade de habitar o mundo (mundus) de outrora: a parceria com os homens era devastadora, não se cria a analista que convém e questionava se era uma mulher de fato. Uma outra solidão apareceu, a solidão do inabitável. As palavras de amor dos parceiros não eram suficientes, o amor passara do contingente ao necessário, ela demandava mais ainda que a relação sexual, que não há, seguisse se escrevendo. A demanda de palavras de amor retornava no corpo, se desdobrava em gozo, em devastação. Um gozo incivilizável (bárbaro) como o gozo de Medeia.
Entretanto, apareceria um momento de virada da análise numa formulação de Jullien que marcaria a presença do inconsciente real: “eu aguardo o Ausente”. Aguardar não é sinônimo de esperar numa análise. Esperar implica um tempo epistêmico, um tempo do inconsciente transferencial, um tempo S1 – S2. Aguardar responde à lógica do ato analítico, a um tempo intemporal. Aqui, foi necessário que ela sustentasse a angústia até que pudesse atravessá-la no momento oportuno, contra a continuidade temporal da espera, do tempo de entender. Há uma diferença entre esperar o Outro e aguardar o ausente, aguardar a inconsistência do S(Ⱥ). No caso de Bénédicte Jullien, algo caminhara, algo do contingente se traçara, se escrevera e fizera com que o necessário da erotomania, do amor louco dȺ mulher, passara ao impossível de uma maneira em que um ponto de amor, um novo amor pudera se fazer presente e ser suportado na impossibilidade. O amor como acontecimento de corpo no matema do gozo da mulher S(Ⱥ) descolado (cisão) da voz (a) do supereu, a qual antes exigia, no universal, seu ser de mulher. Houvera uma passagem do silêncio como não dito a partir do supereu ao silêncio como vazio, como a ausência da existência do Outro. A voz, que antes era “cale-se”, se declinara em amor à língua no que ela tem de mais singular, de impossível, de anterioridade ao seu inconsciente, seu sinthoma. A parceria passara a se sustentar na inexistência da exceção, no primeiro quantificador à direita das fórmulas da sexuação, no qual o parceiro é a ausência.
A análise permitira que o sujeito fosse extraído de uma cifra (letra), que se (de)cifra. Passo a passo, lalangue se desprendera da fala por meio da ressonância e inconsistira a armadura do amor ao Pai da histeria à medida em que pudera transitar pelo feminino, à medida em que desacreditara nas palavras dos parceiros, no fundo, nas palavras devastadoras da mãe. Jullien foi do errar ao andar por meio da ressonância. Passou a ser uma incauta que não erra, porque já não acreditava mais no inconsciente transferencial.
* Bénédicte Jullien é psicanalista em Paris, membro (AP) da Escola da Causa Freudiana e da Associação Mundial de Psicanálise. AE da Escola em exercício.
Referências Bibliográficas:
JULLIEN, B. L’amour de la langue, in Quarto n° 124. Texto traduzido para o português por Samyra Assad e revisado por Vera Avellar Ribeiro.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20. 2ª ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1985.
LACAN, Jacques. O Aturdito, in Outros escritos. 1ª ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 2003.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 21 (inédito).
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