ENTREVISTA PARA O JORNAL CORREIO SOBRE A PANDEMIA DE CORONAVÍRUS*
- Marcelo Braz de Almeida
- 28 de mar. de 2021
- 7 min de leitura

O consultório de Freud em Viena (arquivo pessoal)
GABRIEL MOURA (CORREIO):
"Durante esse um ano de pandemia, nossa relação com o coronavírus mudou bastante. Começou como brincadeira, depois tornou-se uma mobilização geral em torno do fique em casa, depois ignoramos o perigo... O que explica todas essas visões que tivemos sobre a mesma coisa, mas em períodos diferentes de tempo?"
É uma pergunta bastante complexa (risos), mas vamos lá! A maior parte da população talvez tenha ido da negação do perigo que vivemos atualmente até a ausência de percepção do perigo no início da pandemia. Essa ausência de percepção anterior foi facilitada pela localização do vírus na China e na Europa, por conseguinte, distante da nossa realidade imediata. As pessoas tendem a tratar todo conhecimento como um conhecimento imediato. O filósofo Georg Hegel chamou de “certeza sensível” essa apreensão imediata do objeto em questão sem passar por uma mediação, como se aquilo que não fosse vivido empiricamente não existisse, o que conota uma grande ingenuidade expressada jocosamente, como você disse, em tom de brincadeira muitas vezes, sem a percepção do perigo. Eu diria que esse primeiro tempo jocoso foi o tempo anterior ao registro subjetivo da tragédia. A descrença em relação ao conhecimento mediado por um saber científico contribuiu para que não houvesse a percepção do perigo, o que nos colocou numa situação difícil enquanto sociedade. Aquele provérbio antigo dos árabes continua valendo: “a ignorância é vizinha da maldade”. O segundo tempo fez com que as pessoas tomassem as medidas de isolamento social, pois foi o tempo da percepção do perigo e do registro subjetivo da tragédia que se abatia sobre nós, no entanto, o país se mostrou despreparado para lidar com as consequências do isolamento social. É verdade que o fator cultural pesou contra o isolamento, pois fazemos parte de uma sociedade marcada pelo contato entre as pessoas, especialmente entre amigos e familiares, mas as necessidades econômicas, a falta de políticas claras e os conflitos entre autoridades municipais, estaduais e federais não foram questões menores. Há, claramente, um declínio das referências que costumavam sustentar e orientar os sujeitos. O sujeito da contemporaneidade descartável não encontra seu lugar nos grandes discursos, em grandes universais, o país já não constrói unidades a partir dessas grandes referências. Ou o sujeito fica sem rumo com seu próprio gozo apenas, ou a bússola se encontra em pequenos grupos, em comunidades de satisfações muito próprias. Se os universais ainda existem, eles foram pulverizados em um número não enumerável de pequenos universais, cada um com sua própria orientação. A exigência do “vamos restaurar a ordem anterior” que aparece amiúde é o sintoma da ausência dessa referência universalizante, pois esses mesmos discursos desmoronam a dita “ordem anterior” se você observar atentamente e contribuíram para o rompimento do frágil pacto pelo isolamento social, levaram parte significativa da população à exposição ao perigo que vemos hoje. Algumas escolhas delirantes e cuidadosamente disseminadas pelas fake news também foram fundamentais para o rompimento desse pacto. Acredito que o ser humano pode aceitar qualquer coisa como verdadeira, pode romper qualquer relação com aquilo que citei como conhecimento mediado por um saber se ele estiver frente a situações de medo e angústia. Não se trata apenas de uma pandemia viral, mas de uma pandemia viral por cima de uma pandemia de mal-estar na civilização, o que talvez explique a grande quantidade de programas sobre bem-estar ainda muito antes do surgimento do coronavírus. Isso carrega, implicitamente, uma percepção da ausência de bem-estar e dos perigos desse mal-estar que vivemos no mundo contemporâneo.
"No início da pandemia, quando os primeiros casos ainda eram confirmados, todos estávamos com medo. Agora, no auge, estamos mais relaxados. O que explica isso?"
Sempre tendemos a temer o novo, justamente porque ele é o desconhecido, e a lidar com mais tranquilidade com o conhecido e repetitivo, mas, em algum momento, parte significativa da população decidiu rejeitar a realidade e aderir a uma narrativa delirante. As redes sociais contribuíram decisivamente para isso como citei anteriormente. Vivemos a emergência de um delírio coletivo em grande escala. Claro que ele foi induzido por uma manipulação em grande escala que usou técnicas dos manuais de guerra psicológica baseadas na psicologia comportamental (seu mau uso) visando o controle das massas para fins financeiros e econômicos, ou a “dominação de espectro total”, nos termos da guerra híbrida apontada por Piero C. Leirner, amparada no advento de novas tecnologias criadas pelas big tech. Devemos estar atentos ao uso que é feito dessa dupla pandemia tanto por aqueles que sustentem uma narrativa que negue a tragédia causada pela covid-19 e que diz “saiam relaxados”, o que Achille Mbembe chamou de uso da “necropolítica”, quanto por aqueles que sustentem uma narrativa que afirme ser “em nome da vida”, pois a “biopolítica” denunciada por Michel Foucault continua presente e dominante no nosso pedaço do mundo, elas visam o controle de populações inteiras. De qualquer forma, para além das narrativas, há um limite para o isolamento social, porque o ser humano é um ser social, então esse limite talvez esteja próximo.
"Existe algum tipo de mecanismo que faz a gente "ignorar" ou "se acostumar" com o perigo?"
Creio que existem algumas maneiras diferentes de lhe responder a sua pergunta, porque são mecanismos de defesa diferentes, mas que são complementares. Podemos apontar um mecanismo de defesa descrito por Freud que se chama “recalque” de uma ideia insuportável para a consciência, mas que retorna por meio de um sintoma por exemplo. Essa ideia insuportável e recusada pode ser “vou morrer”, ou outra qualquer. Quando toda a realidade, ou um pedaço dela, se torna insuportável, também podemos responder com outro mecanismo de defesa, aquilo que Freud chamou de “rejeição” de uma ideia insuportável e que é a base para a expulsão que exclua a percepção de um perigo. Diferentemente do “recalque”, essa “rejeição” não permite que a ideia e o afeto ligados a ela permaneçam no registro do mental, no inconsciente freudiano, eles são expulsos para o exterior e retornam como uma desacomodação abrupta, uma perturbação, na alucinação e/ou no delírio. Há ainda o que Jacques Lacan chamava de “passagem ao ato”, muito comum na psicose, mas também encontrada nas outras estruturas. A “passagem ao ato” é uma resposta corporal, sem sujeito, pois o sujeito desaparece frente a uma angústia ou um medo, a ação enlouquecida aparece como uma resposta a ambos sem nenhum tipo de cálculo. Não podemos esquecer também daquilo que Skinner chamou de “habituação”. O ser humano pode aprender a conviver com eventos que poderiam ser insuportáveis aparentemente. A presença constante de um estímulo ligado a um evento como uma pandemia pode levar qualquer ser humano a não o perceber como um perigo de fato se o ser humano X for exposto a ele em curtos intervalos de tempo e com intensidade semelhante. Aquele que foi exposto vai se acostumando ao estímulo, a resposta ao estímulo vai perdendo intensidade e ele passa a se focar em outras questões mais imediatas. Se a gente pensar para a além do perigo, pensar em estímulos gerados por comportamentos grotescos e absurdos, a nossa capacidade de se espantar também tende a cair na medida em que eles vão se tornando parte do ambiente. Se você encontrar um jegue circulando dentro de um hospital no primeiro dia, você vai se indignar bastante. No dia seguinte, você vai se indignar um pouco menos. No terceiro dia, se você encontrar o jegue dormindo no hall principal do hospital, você vai me dizer: “ah, é apenas um jegue dormindo no hospital, a situação já foi muito pior”. Entende? Esse conceito da psicologia comportamental é usado nos manuais de guerra psicológica que citei antes.
"A pandemia está se alongando mais do que imaginávamos. Primeiro pensávamos ser algumas semanas, depois poucos meses. Estamos completando um ano. Esse fato da pandemia parecer que não vai acabar e esse atual pessimismo com a chegada rápida da porta de saída provoca qual efeito nas pessoas?"
As pessoas acionam alguns mecanismos de defesa como mencionei na resposta anterior, mas esses mecanismos não aparecem “a olhos vistos”. Os quadros que o senso comum e a medicina costumam chamar de depressão, “o mal do século”, são aqueles que mais se apresentam fenomenologicamente no dia a dia. Para a psicanálise, a depressão não é uma doença, ela é um sintoma de que algo do afetivo, do afeto como verbo, como aquele resto de páthos (paixão) que afeta o corpo se apresentou por meio de um retorno do recalcado por exemplo, ou pior se for algo como “uma desordem na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito” para citar Jacques Lacan em referência às psicoses. Cada caso é um caso, um a um, mas o que tenho visto se apresentando com mais frequência como casos de “depressão”, na verdade, são casos de lutos que não foram elaborados e que foram gerados, indiretamente, pela pandemia: perda do emprego, separação (o convívio diário tornou-se insuportável), a necessidade de reinventar-se profissionalmente, mudanças bruscas de rotina, mortes de entes queridos, perda da liberdade de ir e vir, etc. Casos em que os restos afetivos não tiveram um lugar para a elaboração e foram silenciados.
"Como manter a saúde mental estando em isolamento?"
Não é uma pergunta simples. Acho que o mais importante é começar pela aceitação de que o isolamento gerou perdas, mas ganhos também, porque, quando se perde, se ganha ao mesmo tempo. O inverso também é verdadeiro, porque não existe ganha-ganha na vida. É o que Freud chamava de “castração”. A civilização é um comércio, pensava Freud. Para ganharmos algo, cedemos outra coisa. Quem não aceita isso está fadado a um grande sofrimento que não aparece nas redes sociais.
"Muitas das pessoas que estão saindo usam a desculpa de "cuidar da saúde mental" e que se ficasse em casa mais tempo "iria surtar". O que há de verdade e de desculpa nisso?"
Quando disse que a preocupação excessiva com o bem-estar é um sintoma desse mal-estar na civilização, me referia à saúde mental. Só se fala sobre saúde mental, porque há pouca sanidade mental no nosso mundo. Essa expressão “iria surtar” pode ser entendida de diversas formas e caso a caso, mas remete ao que disse antes sobre alguns mecanismos de defesa. Surtar como gíria, ou surtar literalmente no sentido da psicopatologia clássica? Seria ter o desencadeamento de uma psicose? A pandemia tem gerado muitos quadros de surtos psicóticos de fato e muitas passagens ao ato nos termos de Lacan. Para alguns sujeitos, o isolamento social tem gerado uma aquietação, sentem uma menor presença do Outro, estão felizes por não terem que ir à rua, mas alguns se sentem ainda mais invadidos, sentem que a presença do Outro é ainda mais invasiva desde que o isolamento social começou e a inquietação é constante. Um a um como disse.
"Essa, agora, é uma visão minha. Ao sair de casa as primeiras vezes, eu estava com medo. Porém, depois de certo tempo e ao perceber que saí 5, 10 vezes e nada aconteceu, comecei a relaxar, achando que o vírus não era tão transmissível e perigoso assim. Ou seja: ao enfrentar o perigo diversas vezes e nada acontecer, comecei a subestimá-lo. Funciona assim a percepção humana em geral?"
Exatamente. Foi o que citei como uma aprendizagem chamada de “habituação” por Skinner.
* Esta entrevista foi publicada parcialmente na matéria: Um ano de pandemia provocou montanha-russa de emoções nos baianos - Jornal Correio (correio24horas.com.br)
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